Mudança paradigmática no olhar sobre a mestiçagemem Casa-grande & Senzala

Um dos estudos seminais sobre a importância e valorização do mestiço no cenário da formação da identidade brasileira foi a obra de Gilberto Freyre, intitulado Casa-Grande & Senzala. Pode-se destacar como aspecto central a valorização que Freyre emprega à miscigenação, isto é, a mistura de diferentes grupos étnicos. Segundo o autor, observar essa peculiaridade sem o fio condutor dos discursos racialistas, se faz necessária para compreensão do Brasil enquanto nação. Em seu trabalho, Gilberto Freyre tira a ênfase que muitos autores que o precederam deram as raças, e direciona seu foco para outra discussão: a cultura. Essa postura será marcada por mudanças profundas na interpretação sobre a identidade brasileira, pois oferece uma releitura otimista e um estilo de maior alcance do público. Cassa-Grande & Senzala, considerada um marco sobre a identidade brasileira, se contrapõe a ideia convencional de que a mestiçagem é degenerativa, isto é, uma ameaça à espécie e à evolução da sociedade. Freyre discorda com a ideia de que as diferenças sociais presente desde a embrionária colônia seja fruto de critérios raciais. Por outro caminho Freyre considera que fatores como a religiosidade cristã favoreceram a posse de terras aos cristãos católicos que tinham o direito pleno de adquirir sesmarias. – novamente é Freyre quem desfaz o discurso sobre desigualdades na colônia com base em critérios raciais. Freyre também desconstrói o mito do determinismo climático ao elucidar que muitas doenças ligadas à verminose estão relacionadas à má alimentação, característica de um sistema latifundiário monocultor. e doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis, estavam ligadas com a entrada dos colonizadores europeus nas Américas e sua atividade genésica (FERREIRA, 2015).
Outra admirável contribuição de Freyre foi seu reconhecimento sobre o papel social do negro, sobretudo no litoral agrário. Não se trata de um enaltecimento singelo, pois o autor confere ao negro uma importância social maior que a do indígena e inclusive do próprio colonizador português. Criticou os estudos da antropologia física, em sua obra Freyre não adere a ideia de superioridade racial apontados por muitos estudos da época e chega a questionar a legitimidade dessas afirmações. O pensamento de Freyre está ancorado no fato de que a formação colonial (e não o determinismo biológico) foi o principal motor das desigualdades entre brancos e negros. O tipo de colonização implantado nas Américas legou ao negro brasileiro, condições de subalternidade e desumanas. Em Casa-Grande & Senzala a origem da miscigenação é pontuada como decorrência das relações de dominação entre colonizadores, indígenas, senhor de engenhos e escravos. Uma relação caracterizada por forças extremadas como o afeto e o autoritarismo, balizando entre poder e sentimentos (FERREIRA, 2015).
O pensamento de Gilberto Freyre segundo Bastos (2015) constitui elementos fundamentais sobre a miscigenação, mas também sobre a vida cultural e política do Brasil como se pode observar a partir da revolução de 1930. Gilberto Freyre contestou as abordagens raciais do final do século XIX e início do século XX. Na virada do século XX observa a busca de uma confirmação das ciências médicas que comprovasse as teorias racialistas sobre suposta inferioridade do negro (com base em exames comparativos entre crânios humanos e chimpanzés), avalizando superioridade ao homem branco.
Se opondo as teses racistas, Freyre fortaleceu a ruptura interpretativa que em sua proposta, parte do princípio da complexidade da cultura africana. Para o autor, existem estágios elevados da cultura africana como entre os povos sudaneses, inclusive afirmando um estágio de desenvolvimento superior ao do colonizador português. Ressaltou o dinamismo da coexistência pacífica entre as três matrizes étnicas e a incorporação de traços culturais do europeu, do indígena e do africano. Deste último, a incorporação da bondade, da alegria, do misticismo religioso, da higiene e culinária (BASTOS, 2015).
As releituras que se faz sobre a mestiçagem após Freire conferem um inegável valor e reconhecimento sobre a presença do negro na cultura brasileira como se observa no quadro do pintor argentino Carybé – Mulata grande. A pintura metaforiza a mulher negra como uma grande mãe, genitora dos elementos que compuseram o cenário cultural brasileiro: a interpenetração religiosa entre catolicismo popular e orixás, a capoeira, a culinária, os ritmos, as músicas e baianas, mas sobretudo porque coloca como tema central a mestiçagem. No olhar do artista, a mestiçagem é representada como fato social identitário da cultura brasileira, uma benesse. Não pactua com a visão de degeneração das raças.
Segundo Bastos (2015), a abolição da escravatura brasileira não representou para o negro a igualdade de direitos, antes colocou a população negra em face de uma icógnita: como inserir o negro nos quadros sociais de um sistema republicano embrionário? Muitos autores se empenharam em responder essa questão como, por exemplo, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Oliveira Vianna, Gilberto Amado, Arthur Ramos, Florestan Fernandes, Renato Ortiz e o próprio Gilberto Freyre.
A miscigenação, na obra de Gilberto Freyre deixa um importante legado sobre o contexto político e social da época, além de servir de análise para a atual conjectura. O patriarcalismo em sua obra Casa-Grande Senzala é analisado como um sistema de organização social originado no seio do modelo das elites agrárias fundiárias em que a estrutura social se desenvolveu no Brasil. Não obstante, essa característica contribuiu grandemente para compreender a formação da sociedade brasileira e de como o espaço político sempre favoreceu aos antagonismos profundos, porém equilibrados. Por meio do patriarcalismo mantiveram-se o equilíbrio harmônico das relações sociais, fazendo do sistema patriarcal uma instituição social capaz de se sobrepor a um Estado ausente e colocar a própria hierarquia da igreja submetida ao patriarca. Paulatinamente, a estrutura patriarcalista vai sendo estendida passando do nível familiar para o social, garantindo uma ordem social sem rupturas.
À guisa de conclusão ressalte-se que Gilberto Freyre foi um precursor da moderna história das mentalidades e o pioneirismo de sua obra se deve ao analisar a infância, a velhice, os festivais, a família, o amor, a sexualidade, os funerais e outros elementos que compõem a iconografia colonial. A mestiçagem em Freyre atenuou os conflitos entre os povos, estreitando a distância entre a Casa-Grande e a senzala. O estudo sobre a mestiçagem direcionou as acusações de males como as doenças, imoralidade, apatia e aversão ao trabalho, ligado ao sistema econômico perverso. Não era a mestiçagem o grande mal, mas sim o sistema monocultor. Gilberto Freyre aborda sua análise como fato social, um dado sociológico inédito sobre o Brasil em que a transmissão da cultura se sobrepõe à transmissão genética.



REFERÊNCIAS


FREITAS, Marcos. C. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2000.


BASTOS, Elide. R. Gilberto freire e o tema da miscigenação. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uy0kou2CcaY. Acesso em 06 de abril de 2015.

FERREIRA, Ana. L. L. Antropologia no Brasil. S. l. s. n., s. d.



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