Senso comum e saber científico

 Reflexão sociológica, à respeito das produções entre senso comum e saber científico



Em Foz do Iguaçu, no Paraná, o Ministério Público do Estado tornou público a prisão de um emigrante, natural da Alemanha, acusado de racismo. Conhecido pelo nome de Eric Bullmann, 64 anos, no inquérito registrado pesam sobre o alemão o hábito de chamado seu vizinho de “preto sujo,” “negrinho”ou simplesmente schwartz, que na língua alemã significa “preto.” Porém como os vizinhos da proximidade de sua casa já se habituaram com essa palavra que o emigrante sempre utilizava para proferir seu torpor às pessoas negras. A ofensa foi motivada pelo fato de recentemente um novo vizinho, José Geraldo Souza, microempresário, ter comprado um terreno em frente a sua casa onde estava construindo sua residência. Mas o estopim mesmo foi quando José Geraldo Souza ao manobrar seu carro de ré, bateu no carro de Bullmann então se intensificaram as ofensas. Bullmann havia declarado anteriormente a outros moradores que se soubesse que o terreno estava a venda teria pago o dobro para não ter um negro como vizinho. O bate-boca acabou com a chegada da polícia ao local e nem mesmo assim o emigrante parava de se referir a José Geraldo com palavras preconceituosas, ficando tipificado, dessa forma, o crime de discriminação racial previsto pela Constituição Federal. Infelizmente, atitudes como essa são muito comuns no Brasil, pois existe entre o senso comum uma associação da população negra ao espectro racialista (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ, 2015).

Sobre o olhar da sociologia, que tem se debruçado sobre o paradigma racial, o preconceito possui uma causa de origem social, no entanto a sutileza de sua ação não permite ser flagrada pelo senso comum que em suas frustrações individuais e arquetípicas passam despercebidas. O preconceito pode ser compreendido em fases distintas e sob diferentes contextos. Na fase narcisista, sua execução engendrava o modelo de estética europeizado projetando uma imagem de homem (e mulher) perfeitos. Sua forma mais cruel consiste quando a soma desses valores assumem a forma de um narcisismo coletivo em busca da moeda para comprar o belo ideal. Nesse caso o discurso vai sendo naturalizado e construindo um tipo e tonalidade do cabelo desejável, a cor perfeita da pele, olhos claros em supremacia dos olhos pretos, castanhos ou dos que apresentam alguma deficiência visual, a altura desejada para práticas exportivas ou determinadas profissões outras características que a indústria cultural acaba reforçando em novelas, filmes e programas como sendo supostamente a melhor. Os meios de comunicação de massa (do inglês, Mas Média) ou simplesmente MCM, tiveram nos avanços tecnológicos, os principais mecanismos sociopsicológicos para reprodução desses "valores," impedindo, dessa forma, a estruturação de um "eu" baseado na experiência ou na diversidade e outra ainda nas diferenças culturais. Nessa dinâmica da falsa projeção da imagem, dar-se ênfase total ao imediato - flash - produzido pelos MCM e que desloca o foco da reflexão principal: a imagem interior que carrega a alteridade, a tolerância e o afeto. Nesse sentido, a falsa projeção da imagem constrói a segregação de grupos como por exemplo, judeus, negros, nordestinos, ameríndios entre tantos (SILVA, 2005).

Felizmente observa-se mudanças de perspectivas quando as pessoas denunciam esse tipo de violência e também quando as leis criadas para combater o racismo são postas em práticas. Já é possível vislumbrar discursos a favor das comunidades negras e quilombolas como a criação de políticas afirmativas. Essas políticas reforçam o discurso sobre a alteridade e diversidade cultural, passando a valorizar suas práticas e valores que permeiam a sociedade brasileira. As reivindicações mais prementes por igualdade perpassa pela educação, oportunidades iguais de emprego e renda, mobilidade social entre outras. Mais o acesso a educação deve ser um ensino diferenciado do praticado nas unidades escolares, cujo conteúdo é um registro de heróis brancos, europeus, vitoriosos sobre as demais nações – eurocêntrico.


O saber tradicional 


Em reportagem publicada em 21 de Agosto do ano passado pela TV Gazeta, Costa (2014) deu visibilidade a tradicionais práticas dos povos quilombolas do estado de Alagoas, destacando o saber tradicional das benzedeiras e sua importância para as comunidades que não podem pagar por uma consulta médica ou não tem como comprar remédios para tratar uma determinada enfermidade. A matéria reconhece essas práticas como um saber da medicina popular. As características desse tipo de tratamento pode ser tipificada pela gratuidade dos serviços prestados, bem como o voluntarismo das benzedeiras que não cobram os serviços prestados. Ressalta ainda que mesmo quando as pessoas procuram um médico para encontrar um tratamento para uma doença, antes passam por uma benzedeira. Outra característica é o caráter não-científico dessas práticas, isto é, embora existam relatos de cura através do uso de plantas, a eficácia desses tratamentos ficam circunscritas a experiência pessoal e comunitária sem o aval técnico de uma pesquisa que comprovem e/ou neguem a eficiência da utilização da medicina popular.

O ofício de benzedeira em geral é transmitido pela tradição oral que passa o conhecimento de geração à geração. As rezadeiras ou benzedeiras como também são conhecidas concentram-se nos municípios alagoanos, como dois exemplos desse saber tradicional a reportagem cita apenas a comunidade quilombola Cajá dos Negros localizada na zona rural de Batalha e a comunidade quilombola Bom Despacho, em Paço do Camaragibe. Nesses municípios algumas mulheres desempenham um papel semelhante à de um médico, pois além de ligarem suas atividades a religiosidade popular, realizam partos da maioria das pessoas daquelas comunidades. Desse modo as benzedeiras embora sejam analfabetas ou tenha pouca escolaridade, gozam de elevado prestígio social pelo trabalho prestado sem ônus.

As benzedeiras utilizam seus dotes curativos para curar doenças bem conhecidas pela população como dor de cabeça, mau-olhado, inchaço, aterramento de sangue, vento ruim, afastar espíritos, quebranto, diarreia, engasgo, ventre caído e outros males “menores”. O rito de cura possui uma performance que somente pode ser feita por quem tem o dom, a dramatização é feita pela imposição de mãos ou com a ajuda de um ramo de manjericão ou pião-roxo, a oração é feita em voz baixa ou alta (COSTA, 2014). Utilizando uma definição de Bittencourt e Saraiva (2015), sobre o saber tradicional, segundo o qual trata-se de “... um tipo de conhecimento que é produzido coletivamente e cujas ideias são transmitidas intergeracionalmente mediante a circulação de discursos e práticas” (BITTENCOURT; SARAIVA, 2015: 12).

Diante de tal quadro teórico, a orientação do Conselho de Medicina de Alagoas (CREMAL) é agir com cautela e bom senso com os saberes tradicionais. A classe médica não pode recriminar essas práticas historicamente estabelecidas. A própria comunidade médica reconhece que há fenômenos não explicados, cientificamente, havendo portanto o reconhecimento de curas milagrosas. Contudo a medicina não pode ignorar os aspectos positivos da fé ou da mente humanas. A orientação do Conselho de medicina é não criar conflito entre os diferentes saberes, uma coisa é o tratamento convencional praticado nos hospitais e por profissionais da saúde que utilizam medicamentos produzidos em laboratórios testados e com aprovação de seu uso.

Na contraparte, o saber tradicional, embora não seja científico é considerado um tratamento mais humanizado, acolhedor, desburocratizado, essas diferenças pesam sobre o paciente na hora de buscar ajuda para sua saúde ou de familiares e amigos. Luanna Rocha, pesquisadora da UFAL, destaca o papel significativo nessas comunidades em relação as práticas de saúde e as práticas sociais. A pesquisadora enfatiza que o saber das benzedeiras é um saber construído e que apesar dos avanços da medicina e de práticas biomédicas modernas, aumento dos serviços de saúde oferecido à população, essas práticas continuam vivas, mantidas pela tradição tanto nas pequenas cidades como também nas grandes metrópoles.

Para Balestieri (2009), professora da UFPB a fé como forma terapêutica independe de rituais, pois devido ao seu caráter intrínseco, baseada na experiência pessoal e sensitiva pautadas nos estudos da psiconeuroimunologia e neurociência (expectativa positiva, estado de meditação, transe, e medicamentos inertes), interferem nos mecanismos dos sistemas nervoso, endócrino e imune. “os neurotransmissores induzidos por esse tipo de expectativa podem ativar a produção de determinados hormônios e células do sistema imune e possível cura” (BALESTIERI, 2009:67). O saber científico preocupado com as “causas” que possam ocasionar a cura conforme inúmeros relatos procura explicar esses fenômenos sem recorrer a explicações de ordem sobrenatural, todavia reconhece a eficácia do tratamento baseado na ação do próprio sistema imunológico que desenvolve defesa contra a doença – nesse caso, a fé é decisiva, o botão que aciona o sistema. Hoje se sabe que efeito placebo da medicina popular tem uma interferência no processo de cura responsável por 20 % dos casos. Nesse sentido, saber tradicional e saber científico devem ser parceiras no tratamento dos pacientes ainda mais quando este se sente bem. Ressalta o presidente da CREMAL (Costa, 2015). A construção de ponte entre os diferentes saberes é uma tônica da pesquisa social, seja por meio da lógica perceptiva ou pela lógica conceitual o importante é que essa lógica seja coerente (como demonstraram muitos pesquisadores) e tenham como objetivo aliviar a dor e o sofrimento das pessoas (BITTENCOURT; SARAIVA, 2015).



REFERÊNCIAS



BALESTIERI, Filomena, M. P. Quando a cura vem do coração e da mente: a fé e o efeito placebo. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009. [ Revista de Ciências das Religiões, ano 03, nº 06, Set. de 2009].

COSTA, Waldson. Benzedeiras de comunidades negras de AL mantêm tradição da cura pela fé. Disponível em http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2014/08/benzedeiras-de-comunidades-negras-de-al-mantem-tradicao-da-cura-pela-fe.html Acesso em 30 de Out. de 2015.

BITTENCOURT, João; SARAIVA, Marina. R. Métodos e técnicas de pesquisas. Disponível em http://ava.ead.ufal.br/pluginfile.php/133928/mod_resource/content/1/Apostila%20Metodos%20e%20Tecnicas%20de%20Pesquisa.pdf Acesso em 23 de Out. de 2015.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. Preconceito: agricultor é preso acusado de racismo. Disponível em http://mp-pr.jusbrasil.com.br/noticias/858937/preconceito-agricultor-e-preso-acusado-de-racismo Acesso em 31 de Out. de 2015.

SILVA, Maria. J. D. Valores, preconceitos e práticas educativas. São Paulo: Casa do psicólogo, 2005.


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