Uma
fábula para tempos sem ética
Um
homem, seu cavalo e seu cão, haviam morrido em um acidente.
Depois do choque inicial resolveram que ficar ali, jogados no
acostamento não resolvia nada. Decidiram, então ir andando para
ver se chegavam em algum lugar. Quando se deram conta, já estavam
caminhando um bom tempo por uma estrada deserta. Caminhada longa,
sempre morro acima, sem referenciais conhecidos. O sol estava
forte e eles acabaram ficando exaustos, desidratados e com muita
sede.
Nada
parecia fazer sentido, sabiam já não estar vivos! Mesmo assim,
precisavam desesperadamente de água. Após algum tempo ao
contornar uma curva, avistaram um portão magnífico, todo de
mármore, que conduzia a uma praça calçada com blocos de ouro.
No centro havia uma fonte de onde jorrava água cristalina, com
mulheres seminuas ao redor. Juntaram suas últimas forças e
correram para o esplêndido local.
O
caminhante dirigiu-se ao homem que numa guarita, guardava a
entrada e o cumprimentou:
–
Bom
dia, ele disse.
–
Bom dia, respondeu o homem.
–
Que lugar é este, tão lindo? Perguntou.
–
Ora! Que pergunta! Não está vendo? Isto aqui é o céu…
–
Que bom que nós chegamos ao céu, estamos com muita sede, disse o
homem.
–
O senhor pode entrar e beber água à vontade, disse o guarda,
indicando-lhe a fonte.
–
Mas, meu cavalo e meu cachorro também estão com sede.
–
Lamento muito, disse o guarda. Aqui não se permite a entrada de
animais. E antecipando seus pensamentos, completou: Muito menos
retirar qualquer coisa e levar para fora. Deixe-os por aí que o
instinto os guiará.
O
homem ficou muito desapontado porque sua sede era grande, mas sua
intuição dizia não ser correto se satisfaria sozinho, deixando
seus animais sofrendo com sede. Eles tinham sido bons servidores e
o homem os considerava mesmo como amigos. Seja por conta do
reconhecimento desta relação de serviços bem prestados, seja
pelas dificuldades enfrentadas juntos ou por naquele momento
estarem com ele. Assim, resolveu prosseguir seu caminho,
estranhando as condições do paraíso.
Depois
de caminharem bem mais, morro acima, a sede e cansaço se
multiplicaram. Exaustos, chegaram a um sítio, cuja entrada era
marcada por uma porteira velha semi-aberta. A porteira se abria
para um caminho de terra, com árvores dos dois lados que lhe
faziam sombra. O panorama era majestoso, porém simples e calmo. À
sombra de uma das belas árvores, um homem estava deitado, cabeça
coberta com um chapéu de palha. Parecia que estava dormindo:
–
Bom
dia, disse o caminhante.
–
Bom dia, disse o homem deitado.
–
Estamos com muita sede, eu, meu cavalo e meu cachorro.
–
Há uma fonte naquelas pedras, disse o homem e indicando o lugar.
Todos podem beber à vontade.
Todos
então foram até a fonte e saciaram a sede, aproveitando para
encher alguns cantis, que estranhamente estava por ali. Na volta,
passaram pelo fazendeiro e agradeceram:
–
Muito
obrigado, ele disse ao sair.
–
Oh! Já vão? Nem passaram pelo pomar. Voltem quando quiserem,
respondeu o homem.
–
A propósito, disse o caminhante, qual é o nome deste lugar?
–
Aqui é o Céu, foi a resposta.
–
O Céu? Mas o homem na guarita ao lado do portão de mármore
disse que lá era o Céu!
–
Oh, não! Aquilo não é o Céu, aquilo é o Inferno. Depois do
portão dourado há um abismo eterno…
O
caminhante ficou perplexo, mas parou para pensar e disse:
–
Mas, então, disse ele, essa informação falsa deve causar
grandes confusões.
–
Absolutamente, respondeu o homem, agora resplandecendo uma
luminosidade ímpar. Na verdade, eles nos fazem um favor.
–
Como assim?
–
É porque lá ficam aqueles que são capazes de abandonar até
seus melhores amigos. Onde há respeito pela vida e pela condição
do outro não há lugar para os que têm o egoísmo como norte.
Aqueles que são capazes de reconhecer os benefícios que
receberam e tratam seus subordinados – sejam homens ou animais –
com justiça e dignidade quando chegam aqui são bem vindos.
–
Mas eu não achei que fazia tanto. Apenas seguia o bom senso,
exclamou o viajante.
–
Aquilo que você chama de bom senso é algo longamente formado,
para muitos é difícil esta vitória. Vão em paz, ou fiquem
conosco, se quiserem. Aqui é um lugar infinito de perfeições.
Vocês irão gostar.
–
E os que ficaram lá, o que será deles?
–
Vê-se que é realmente uma boa alma. Depois de atravessar o
portão dourado indo à busca de água, dos prazeres ou do que
estiverem desejando, encontrarão a decepção e o vazio das
máscaras que caem – junto com eles, no vale tenebroso e
profundo.
–
Eles ficam lá para sempre?
Oh
não! Isto também é ilusão. Mas perdura até o momento em que,
cansados de sofrer decidam melhorar-se. Mas, antes eles terão que
vencer o pior dos demônios e, então, escalar, palmo a palmo, a
profundidade a que se lançaram. Somente depois é que poderão
aparecer por aqui e implorar para recuperar o tempo perdido.
–
Nossa! Que coisa. Posso perguntar quem é a besta que devem
enfrentar.
–
Claro! São eles mesmos. O pior inimigo reside no interior de cada
um. Ele tem duas faces e chama-se: Não me Importo e Não Tenho o
Suficiente. A maioria sucumbe perante sua própria iniqüidade e,
neste trajeto causa dor, fome e destruição por onde passa ou
gerencia suas empreitadas.
Como
diria Pascal: É melhor fazer a aposta e acreditar na
sobrevivência da alma e na necessidade de uma vida ética e
pautada pela justiça e eqüidade. Se houver apenas o vazio por
lá, você não perdeu nada e nem sequer existirá para pensar
isto, já que seus átomos estarão dispersos no espaço. Mas se
houver uma continuidade qualquer e você não se importou de viver
à custa de danos e mágoas infringidos a outros…
DEBATE
E REFLEXÃO
Por
que o caminhante não abandonou seus animais para atravessar o
portão de mármore?
Portão
de mármore, calçada de ouro, mulheres belíssimas são valores
que a sociedade capitalista instiga seus cidadãos a buscarem
para serem felizes. Que outros valores você destacaria como
superiores?
Você
já teve uma amizade sincera? No texto acima o autor chama
atenção para algumas atitudes que não são éticas em relação
aos nossos amigos, pets, etc.:
lá
ficam aqueles que são capazes de abandonar até seus melhores
amigos.
O que está fábula quer nos ensinar com essa mensagem?
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